Wednesday, October 28, 2020

Desbanalizando o olhar.

Experiência própria vivida hoje: na fila de um hospital do SUS onde fiz, há alguns dias, a minha segunda operação de catarata e correção de miopia, de 9 graus para 0,25.

O mundo sem a catarata e sem miopia tem mais nitidez, as cores mudam o redshift, mas as relações entre as cores continuam valendo. Vou poder continuar pintando.

Mais do que pintar, pintar é observar, é desbanalizar o banal.

O que muda efetivamente é que antes eu via um mundo liso, sem rugas ou vincos, sem distinção de faces, um mundo de sombras platônicas que me deixavam indiferente, não havia sentido em olhar, o olho desviava do olhar invisível do Outro, pois cada Outro parecia o mesmo, era apenas outro qualquer, um som de voz, uma direção, um movimento ritmado do corpo, um gesto pessoal.

Hoje percebi como é importante enxergarmos as coisas e os outros em suas diferenças individuais, como suas caricaturas trazem à vida características que são fundamentais para a compreensão da diferença do Outro.

Hoje vivi a emoção de ver o olhar desalentado, a lágrima, a pele negra, a branca amarela parda, os olhares acima das máscaras, os olhos, as rugas, os cabelos brancos, pintados, ausentes, os tecidos das vestes, esmaecidos, vívidos, banais, sapatos novos ou gastos, os calos das mãos que antes só poderia experimentar no aperto improvável do toque, hoje vi, depois de anos, o tremor das mãos e do corpo, no frio da madrugada, no gesto de levar o lenço aos olhos, que antes me eram imperceptíveis. Amaciados. Amortecidos.

Estamos vivendo em um mundo de deficientes visuais crônicos, estamos todos com cataratas em nossas mentes, nada mais nos desbanaliza, vivemos na procura do explícito, do pornográfico, do que nos afeta violentamente, da própria violência, das fortes emoções que, ao final, nós também banalizamos.

O saber não é suficiente, o discurso filosófico não é suficiente. A vida tem que ser vivida.

Precisamos de um bisturi de ultrassom ou um martelete hidráulico para desobstruir nossa visão.

Eu tive a sorte de poder sentir, neste instante ínfimo de arrebatamento, literalmente, meu mundo expandir. A eternidade num instante.

Como diria Joseph Campbell, viver a experiência arrebatadora de estar vivo.