Experiência própria vivida hoje: na fila de um hospital do SUS onde
fiz, há alguns dias, a minha segunda operação de catarata e correção de
miopia, de 9 graus para 0,25.
O mundo sem a catarata e sem
miopia tem mais nitidez, as cores mudam o redshift, mas as relações
entre as cores continuam valendo. Vou poder continuar pintando.
Mais do que pintar, pintar é observar, é desbanalizar o banal.
O que muda efetivamente é que antes eu via um mundo liso, sem rugas
ou vincos, sem distinção de faces, um mundo de sombras platônicas que
me deixavam indiferente, não havia sentido em olhar, o olho desviava do
olhar invisível do Outro, pois cada Outro parecia o mesmo, era apenas
outro qualquer, um som de voz, uma direção, um movimento ritmado do
corpo, um gesto pessoal.
Hoje percebi como é importante
enxergarmos as coisas e os outros em suas diferenças individuais, como
suas caricaturas trazem à vida características que são fundamentais para
a compreensão da diferença do Outro.
Hoje vivi a emoção de
ver o olhar desalentado, a lágrima, a pele negra, a branca amarela
parda, os olhares acima das máscaras, os olhos, as rugas, os cabelos
brancos, pintados, ausentes, os tecidos das vestes, esmaecidos, vívidos,
banais, sapatos novos ou gastos, os calos das mãos que antes só poderia
experimentar no aperto improvável do toque, hoje vi, depois de anos, o
tremor das mãos e do corpo, no frio da madrugada, no gesto de levar o
lenço aos olhos, que antes me eram imperceptíveis. Amaciados.
Amortecidos.
Estamos vivendo em um mundo de deficientes
visuais crônicos, estamos todos com cataratas em nossas mentes, nada
mais nos desbanaliza, vivemos na procura do explícito, do pornográfico,
do que nos afeta violentamente, da própria violência, das fortes emoções
que, ao final, nós também banalizamos.
O saber não é suficiente, o discurso filosófico não é suficiente. A vida tem que ser vivida.
Precisamos de um bisturi de ultrassom ou um martelete hidráulico para desobstruir nossa visão.
Eu tive a sorte de poder sentir, neste instante ínfimo de
arrebatamento, literalmente, meu mundo expandir. A eternidade num
instante.
Como diria Joseph Campbell, viver a experiência arrebatadora de estar vivo.
Tudo-ao-mesmo-tempo-agora. Uma janela para o que poderia ser e o que talvez seja.
Wednesday, October 28, 2020
Desbanalizando o olhar.
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